Sá, Rodrix & Guarabyra e o convite a uma viagem pelo Brasil

Sá, Rodrix & Guarabyra e o convite a uma viagem pelo Brasil

Em tempos pandêmicos, as paredes de casa sufocam. Num domingo tentando driblar a monotonia do isolamento, Gabriel escolhe um dos discos que mais recorremos no final de semana, “Presente, Passado e Futuro” de Sá, Rodrix & Guarabyra. Dessa vez, porém, a obra me acessou de uma forma diferente. Quando notei minuciosamente o som que ecoava, até mesmo aquele chiado de disco velho entre as faixas que nos faz achar que chove lá fora, por algum momento, senti-me viajando por uma cidade interiorana, observando pela janela a paisagem montanhosa do interior mineiro a qual bem conheço. De alguma forma, reconectei-me às minhas raízes que me doem o coração de saudade.

Os músicos, comenta o próprio Luiz Carlos Sá em um artigo para Revista USP, sempre possuíram grande prazer em fazer longas viagens pelo Brasil. No segundo disco, “Terra” de 1973, inclusive, foi algo que se intensificou ainda mais com o aumento de shows e com a decisão de Sá e Guarabyra de rodar a região do São Francisco. Talvez, por esse espírito viajante, os artistas conseguiram tão facilmente me transportar para além das paredes de casa. Em a “Primeira Canção da Estrada”, é possível se colocar, sem esforços, no lugar dos compositores, no meio da estrada, procurando uma “carona que me leve, pelo menos, /À cidade mais próxima”, o vento entrando pelas “roupas rasgadas”, o cansaço de carregar “os pecados do mundo”. 

Em suas obras, cantam sobre amores perdidos na estrada, cigarros de palha, mulas pretas, milho verde e marimbondos. Uma temática regional capaz de se conectar com o brasileiro que tem, ou teve, contato, nem que seja mínimo, com os espaços para além do urbano no país. Algo possível não só pelas letras, mas pelas melodias advindas de uma cultura nacional raiz. A música rural, do sertão, principalmente o xote, o baião e o coco.

As peculiaridades desse trabalho não estão, no entanto, resumidas acima. Considero até de demasiada dificuldade e de tamanha prepotência tentar resumi-las, mas o medo de me delongar por demais me obriga a tentar. Bem, fora a originalidade já mencionada, os arranjos são embalados por experimentações na viola caipira de dez cordas e por instrumentos até então vistos como exóticos (cravo, celesta, harpsicórdio), ainda, ao mesmo tempo, incorporam um folk-rock americano efervescente da época. É o que faz o som de Sá, Rodrix & Guarabyra, sob minha perspectiva, um exemplo material do antropofagismo idealizado por Oswald de Andrade. Os três músicos juntos mostraram como é possível entrelaçar elementos externos e internos à cultura brasileira de forma a criar algo surpreendentemente novo e original. Nesse caso, o rock rural, estilo musical inaugurado em 72 no primeiro disco do grupo, “Passado, Presente e Futuro”. 

O próprio nome artístico da banda, uma união dos sobrenomes dos integrantes, foi inspirado na principal influência exterior dos artistas: o trio Crosby, Stills & Nash. Uma referência visível não apenas no nome, mas na própria construção melódica das faixas, que exploram sem moderações a divisão vocal, presente em peso no trabalho do grupo brasileiro, assim como no clássico “Crosby, Stills & Nash” de 1969. 

Nesse dia nublado e frio da pandemia, percorremos grande parte da discografia desses expoentes do rock caipira e eu sentia-me mesmo viajando pelo meu país, a cabeça pela janela ao vento olhando estradas bonitas. Chegamos até a carreira da dupla Sá & Guarabyra, que se mantiveram juntos após a saída de Rodrix, em 1973. É incrível como toda essa identidade artística mantém-se presente também na dupla, mesmo que variando entre um espectro: “ora mais para o rock, ora mais para uma música de raízes fincadas no regional” – fala do próprio Luiz Carlos Sá. 

Continuidade percebida, por exemplo, em “Marimbondo”, faixa do disco “Pirão de Peixe com Pimenta” (1977). O tema não é nada extraordinário. Os dois artistas cantam sobre uma banalidade da vida no interior brasileiro: “Marimbondo vem fazer sua casa/ Em minha”. A música é uma conversa com o animal, tentando convencê-lo de que é muito melhor que faça sua casa no teto ou na bananeira. Ao cantarem “za, za, za, za, sai azar marimbondo”, ilustram a própria tentativa de espantá-lo para longe. 

A composição retrata perfeitamente um dos principais elementos que tornam tão peculiar e rico o trabalho desses artistas: a capacidade de retratar, de forma tão admirável, as coisas comuns que atravessam a vida não restrita aos prédios, aos congestionamento ou à velocidade do urbano. Esse trabalho, extremamente coeso, apesar das diversidades intrínsecas, propicia, assim, a experiência de uma viagem além do Rio-São Paulo, pelo Brasil do campo, das barrancas do São Francisco, das estradas de Minas Gerais. Pegando o trem de Pirapora para se perder em Montes Claros e se achar em Belo Horizonte.

Ficha técnica do maior clássico de Sá, Rodrix e Guarabyra:

  • “Passado, Presente & Futuro” é o primeiro álbum da carreira dos cantores/compositores Sá, Rodrix e Guarabyra. 
  • Lançamento: 3 de março de 1972
  • Gravadora: Universal Music Group

Arianne Ruas: jornalista e artista independente, tendo lançado 1 ep, “Temporal”.

Confira a minha performance no Rock Cabeça Sessions:

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Arianne Ruas

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