Festival Palco Livre e a nova safra B/G do rock belo-horizontino

Baseado na primeira edição do Festival Palco Livre, realizado no espaço do Distrital no último sábado (23/05), é com alívio que constato que o rock independente de Belo Horizonte ainda tem fôlego apesar de tantas bandas encerradas nos últimos anos, casas fechadas, covers desavergonhados e, claro, o completo breu cultural propiciado por mandatos seguidos de um governo que nunca tratou a cultura como prioridade.
Foram 7 (!) bandas enfileiradas (8 com a saída repentina da Kosovo, uma das mais interessantes e eu diria até importantes para esta nova safra), numa noite de público pagante pequeno em relação a outros dias (vale lembrar que o Distrital por natureza atrai uma plateia heterogênea, de forró a hip-hop, passando por rock, é claro, e nunca apenas um nicho). Mas o que importa é que havia, acima e abaixo do palco, muita gente empolgante.
Criticado com a alcunha “rock de garagem” por dirigentes que deveriam estar mais preocupados em movimentar esse cenário do que esquentar o próprio bolso com o sertanejão de sempre, a safra B/G* do rock mineiro foi capaz de demonstrar com set lists 100% autorais e um entra-e-sai cronometrado que está apta, pelo menos tecnica e profissionalmente, a atrair públicos pagantes de respeito, e não tão somente servir como bandas de abertura para medalhões do showbizz.
Confira o line up banda por banda:
Infelizmente não consegui chegar a tempo da primeira atração, o Donaclara, mas pelo nome já dá para saber que é uma galera que se reinventa em cima das nossas tradições. A Tipo Um, velhos conhecidos, tive que ouvir do lado de fora enquanto meu telefone recarregava. Embora não haja registros, houve a constatação “via ouvido” de que Bill é o verdadeiro The Boss dessa turma, com uma voz tão imponente quanto seu corpanzil, algo que, somado à proficiência dos demais integrantes, contribui para uma presença de palco simplesmente fenomenal digna de uma Dave Matthews Band.
Seguindo a noite com a Ursamenor e sua formação atípica, porém bem típica para os dias de hoje de bandas com maioria de mulheres (ou mais de uma, pelo menos). A exemplo do que foi a brilhante Miêta, o Ursamenor são 3 garotas instrumentistas e um baterista (o velho de casa, Davi Lanna). À primeira impressão, o som se traduz em um shoegaze que luta contra a obviedade do estilo, com Mariana Coura impondo todo o vigor das suas letras em português sobre camadas virulentas de guitarras. Canções indie fofinhas – e algumas nem tanto – que tocam o coração até mesmo de quem não tem um.
Mostrando que o metal ainda está presente no celeiro que revelou Overdose, Sepultura e Eminence (para citar apenas três), os meninos do Skive literalmente invadiram o palco com um figurino trevoso que traduziria fielmente o estilo não fosse pelo mais extasiado dos seus guitarristas em sua pólo impecável. Com uma cozinha incendiária que instantaneamente remeteu aos melhores momentos do Metallica e um vocalista com timbre que até chega a fazer uma cosquinha em Chris Cornell, foi emocionante ver que ainda tem jovem que reverencia com tanta técnica o trash metal produzido por quem veio (bem) antes deles, trocando o culto à desafinação que teve seu ápice na Geração Perdida pelo virtuosismo de guitarras bem emparelhadas e ensurdecedoras.
Limpando algumas lágrimas que se misturaram ao chope, quando eu já não me dava por mim, eis que surge uma das grandes revelações da noite. Falo do único artista que teve “colhões” de botar o próprio nome para jogo no rol do festival: Rafa Bicalho. Uma impressão que se confirmou a partir da performance, pois trata-se de um sujeito tão talentoso e carismático que em pouco tempo me fez enturmar com a galera que já batia palmas e repetia letra por letra diante de uma banda diversificada que traz, ainda, um casal de mulheres competentíssimo na batera/baixo, o que achei perfeito para contrabalancear à vibe metaleira que antecedeu a apresentação.
Após me certificar que o legado Skank estaria à salvo com o quarteto Bicalho, muito prazer, eu me deparo com uma das bandas mais divertidas e, por que não, “malandras” da noite: a Coyotes Boratchos, uma espécie de Santana com Bezerra da Silva e integrantes com figurino de vilão de novela das oito. O tipo de trilha sonora perfeita improvável para dar aquela rebolada num fim de noite regado a uísque e pensamentos intrusivos. Que esses caras ainda não tenham explodido Brasil afora eu só atribuo à onda conservadora de pastores-mirins e chupetinhas que automaticamente retardam a população.
Velhos conhecidos do Rock Cabeça, o exército simpático do Escadacima subiu ao palco depois das duas da manhã com pose de headliner. E não se trata de ironia gratuita: eles realmente entregaram um show típico de fechamento de festival, ainda que, segundo seu vocalista espirituoso, não tenham exatamente tocado para o seu “maior público”. Se eu já havia comentado com eles que a sonoridade do estúdio lembrava Blur, ao vivo me senti como se assistisse ao Blur no estádio de Wembley diante da química enlouquecida dessa turma no palco. Sim, se houvesse bala na agulha para a banquinha do “merchan”, pode ter certeza que, do Escadacima, eu compraria cd, dvd, fita cassete, e até uma réplica do óculos do frontman (que é para ver se eu ficava tão cool quanto).
Graças à crença de músicos como o Daniel Crase (de crazy), que poderia simplesmente se deixar sentado atrás da bateria do Daparte enquanto se reveza entre shows do Oasis, eu, amigos, bandas, e amigos das bandas pudemos desfrutar de algumas horas de música boa produzida não nessa garagem pejorativa e redutora, mas no nosso quintal, na nossa casa. No Estúdio Central. No estúdio emprestado. Na casa de um, de outro. O resultado de um evento como esse sempre, meus amigos, ocorre no longo prazo, somando-se a outros, mediante recordações e constatações de que não é preciso gastar 1000 reais em 6 x no cartão e sair do Estado para se ouvir música de qualidade que toca a alma. Basta abrir a janela lateral.
*Geração B/G (boy girl), pois as bandas de BH nunca foram tão diversas em termos de gêneros de seus integrantes como agora.